The Vain


Era só mais uma quinta-feira sozinha em casa, vendo tv e comendo o que ainda restava na geladeira.Não restava muito,era fim de mês e ela estava vão vazia quanto meu saldo bancário.Era também dia de blues e jazz num bar ali perto, onde costuma freqüentar as mesmas tristes e entediantes figuras todas as noites.

Vesti um vestido preto tão apertado que me fez agradecer por só beber água nos últimos 5 dias, um sobretudo de couro e minha famosa bota de cano alto.Os vizinhos sabiam de cor o som dos meus passos incertos no corredor chegando de mais uma noite regada a gim. Nas suas camas, todos sonhavam secretamente em me amparar no elevador e serem convidados pra uma inesquecível noite com vinho, suor e sexo. Eu nunca dei essa chance pra nenhum deles, mas sentia seus olhos me despindo cada vez que cruzavam comigo no saguão. Não valiam à pena.

Conferi mais uma vez como eu estava no espelho. O cabelo caindo no ombro brilhava na luz em tons acobreados. Meu corpo permanecia o mesmo de anos. Ninguém poderia dizer que estava pra completar 32 anos. No máximo diriam 26.

Como eu disse, era só mais uma noite de blues e jazz no Vain.Tranquei a porta e atravessei o corredor pisando firme e ecoando pelo ar o som dos saltos no mármore gelado. Chamei pelo elevador e antes que ele chegasse, o vizinho dos 43 apareceu ao meu lado ofegante e vestindo o costumeiro moletom de caminhada.

Fazia um frio incomum na cidade e desejei ter vestido uma meia calça mais grossa. Desci pelo elevador com o rapaz, apenas murmurando como resposta às inúteis observações climáticas dele.O porteiro disse algo que eu não entendi bem. Algo relacionado a gás e correspondência, mas não prestei muita atenção. Fiz um aceno indecifrável e corri para a rua. Ah, o vento gelado!Ele soprava minha nuca e subia pelas minhas pernas, me fazendo arrepiar até a alma. Agora desejei também não ter usado este estúpido vestido fino.


No Vain a atmosfera sempre é mais acolhedora. Com o aquecedor ligado e meu gim tradicionalmente servido no balcão às 23:30h, sinto que a noite pode ficar um pouco melhor. Raimundo era um negro alto, calado e sempre sorridente. Era também meu garçom favorito e sempre tinha algo interessante a dizer.

-Boa noite, branca.

-Um tanto o quanto fria, não?!

-É pra isso que serve o seu gim.

Virei meu copo e me dirigi ao camarim. Ao entrar me deparei com a imagem do jovem rapaz de cabelos pretos, olhar profundo e um perfume que inebriava toda a sala e fazia meu estomago girar e ficar prestes a pular pela garganta.Ele limpava seu saxofone com empenho exemplar.Como se namorasse o instrumento, ia deslizando a flanela pelo metal dourado que refletia seus olhos negros e o apertava lentamente contra o corpo.

-Boa noite, Linda. –e sorriu.

-Ainda está para ficar.

-Planos pra hoje?

-Os melhores. – e sorri.

-Divida-os comigo. Prometo fazer tua noite melhor que você possa esperar.

-De você nunca espero só o melhor. Está sempre me surpreendendo.

Acendi o cigarro e saí do camarim enquanto Renato ainda polia seu saxofone, agora me olhando com um sorriso divertido. Fui até o palco e observei o lugar.

The Vain continuava o mesmo há tantos anos quanto eu me recordava.Logo na entrada o clima boêmio se insinuava com a visão do bar. Todo revestido em madeira, possuía nas prateleiras centenas de garrafas, taças e copos que brilhavam refletindo nos quadros e pinturas de grandes artistas pendurados nas paredes. As mesas de metal escuro se espalhavam pelo pequeno salão e ao fundo um pequeno e baixo palco se mostrava iluminado apenas por um fraco refletor. Um piano, um microfone, um banquinho e nada mais. Todo o lugar era encoberto por uma atmosfera aconchegante, ébria e nostálgica, fosse pela fumaça que circulava pelas mesas ou pelos olhares que circulavam através da fraca luz.O Vain era um local para lembrar momentos ouvindo uma boa musica ou simplesmente beber até esquecê-los. A segunda opção era a mais comum.

Voltei-me novamente ao palco e subi. Renato já estava sentado em um baquinho com seu sax reluzente e olhando para o chão, como se tivesse perdido ali algo. Sentei-me no banquinho do piano, ajeitei o cigarro entre os dedos e cruzei as pernas. Levantei os olhos e olhei ao redor. Na maioria das mesas se sentavam as mesmas pessoas de sempre, embora esta noite houvesse um numero considerável de novos rostos.E era para estes rostos que eu falei, quase sussurrando:

-Boa noite, nobres, novas e conhecidas almas. Meu amigo aqui do sax, Sr. Renato –lhe fiz uma reverencia- prometeu que me surpreenderia esta noite. Vamos ver o que ele tem a nos oferecer.

Virei-me para o jovem e belo rapaz e esperei que ele iniciasse a música. Era assim que fazíamos todas as quintas, uma surpresa para mim e para o público. Me deleitava com o prazer das primeiras notas tocadas perfeitamente por ele, enquanto eu buscava reconhece-las de algum lugar do passado.É claro que com o tempo eu já estava acostumada e as reconhecia facilmente, mas Renato sempre me surpreendia.

Cinco notas.

Fazia um frio cortante, por isso agradeci o convite de dar uma volta pela cidade com Eduardo. Depois de horas rodando sem rumo exato, paramos no mirante para observar a vista.


A cidade iluminada por todas as sua luzes tornava a noite incrivelmente linda.Um arrepio percorreu minha espinha,mas desta vez não foi pelo frio.Era algo além do físico.Era a ansiedade, a esperança e principalmente o medo do que estava por vir.

Eduardo percebeu que eu tremia e passou a mão pelos meus ombros, me abraçando forte e me aquecendo, até que eu me senti segura o suficiente para lhe olhar nos olhos e dizer o que havia ensaiado toda a semana.

-Estou indo embora.

-Agora?Mas acabamos de chegar, eu...

E parou. Olhou nos meus olhos e percebeu que eu não me referia àquele lugar, àquele momento. Eu estava indo embora de casa,da cidade e da vida dele.

-Existe algo que eu possa fazer pra você ficar?

-Infelizmente não.

Três notas tocaram no rádio do carro. Duas lágrimas escorreram no meu rosto, disputando entre si qual molharia primeiro o meu peito.

Mais duas notas tocaram no rádio.

Senti novamente o calor do Vain e antes que me desse conta, estava enchendo os pulmões de ar e soltando-o pausadamente enquanto começava a cantar, o mais suave possível, Ella Fitzgerald.

Blue moon

You saw me standing alone

Without a dream in my heart

Without a love of my own

Blue moonYou know just what I was there for

You heard me saying a prayer for

Someone I really could care for...







E a noite só estava começando.